Crítico ferrenho dos chineses durante a campanha eleitoral, o republicano ameaçou tributar em até 60% os produtos importados do país asiático. Agora, fala em possível acordo comercial e diz que prefere evitar tarifas. Donald Trump, presidente dos EUA, e Xi Jinping, presidente da China, em foto de 29 de junho de 2019
Reuters/Kevin Lamarque
Em quase duas semanas de seu retorno à Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, surpreendeu especialistas e parte do mercado financeiro ao revelar uma postura mais pragmática e menos agressiva em relação à China, sua grande adversária comercial.
Se durante a corrida eleitoral o republicano disparava contra o país — prometendo tarifas imediatas e de até 60% sobre produtos importados chineses —, agora, eleito, o tom tem sido mais ameno.
O presidente norte-americano não só deixou de aplicar taxas mais altas contra os asiáticos neste primeiro momento: ele também indicou a possibilidade de que os dois países cheguem a um acordo comercial.
“Eu posso fazer isso [firmar acordos com a China] porque tenho algo que eles querem: uma mina de ouro”, disse, ao ser questionado em entrevista à Fox News se seria possível firmar entendimentos com o líder chinês, Xi Jinping.
“Temos um grande poder sobre a China: as tarifas. E eles não as querem. Isso é um tremendo poder sobre o país”, acrescentou o republicano.
Por mais que ainda sejam os primeiros dias de governo, a falta de ação de Trump na questão tarifária tem se refletido de forma positiva nos mercados emergentes, o que inclui o Brasil.
A mais nova prova de fogo desse otimismo ficou para este sábado (1º). Essa é a data para a qual o republicano prometeu aplicar tarifas de 25% sobre produtos do Canadá e do México, além de uma tributação adicional de 10% sobre itens da China. Ele reafirmou a promessa nesta quinta-feira (30).
Enquanto os anúncios não se confirmam, a falta de medidas concretas tem se refletido na valorização do real em relação ao dólar. Desde que o bilionário reassumiu a Casa Branca, a moeda brasileira avançou 3,13% em relação à norte-americana. Nesta quinta, fechou cotada a R$ 5,85.
Isso acontece porque o mercado financeiro já vinha esperando por um Trump bastante duro em seu protecionismo. A quebra dessa expectativa inicial fez os agentes reajustarem suas rotas, à espera de novos sinais sobre a postura do presidente.
“Fiquei surpreso. Não esperava em hipótese alguma pela falta de medidas objetivas de Trump”, diz o economista Lívio Ribeiro, pesquisador associado do FGV Ibre e sócio da BRCG Consultoria. “As ameaças ficaram muito mais no discurso, pelo menos por enquanto, do que em algo genuíno.”
O modo de agir de Trump é semelhante ao de seu admirador e presidente argentino, Javier Milei, que mudou completamente de discurso sobre o gigante asiático após assumir o poder.
Conforme mostrou o g1, Milei dizia em sua campanha que não faria negócios com a China e “nenhum comunista”. No governo, passou a se referir ao país como “parceiro comercial muito interessante” e fez questão de marcar um encontro bilateral com Xi Jinping, no G20, em novembro do ano passado.
Para o professor Rodrigo Zeidan, da New York University Shanghai e da Fundação Dom Cabral, tanto o presidente norte-americano quanto o argentino seguem a mesma lógica.
“Uma coisa é ser eleito. Outra, ter que governar. A China é um grande parceiro comercial dos EUA. Então, há muito interesse”, diz. “Trump promete o que tem que prometer para vencer a eleição. Mas, quando tem que tomar efetivamente as medidas, negocia.”
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Balança comercial
De janeiro a novembro de 2024, a China correspondeu a 10,8% das importações feitas pelos norte-americanos.
O economista-chefe da consultoria Análise Econômica, André Galhardo, destaca que o país asiático foi o segundo que mais exportou para os EUA, atrás apenas do México (12,5%). Em terceiro lugar, ficou Canadá (10,1%).
Quando observadas as exportações dos norte-americanos, a China foi o terceiro principal destino, consumindo 5,38% do total das vendas. Enquanto isso, o maior comprador dos EUA foi o Canadá (12,96%), seguido pelo México (12,4%).
Relação comercial entre EUA e China.
Kayan Albertin/Arte g1
“Apesar de a China ser o terceiro maior importador dos EUA, os norte-americanos acumularam um déficit de US$ 267,4 bilhões com o país asiático de janeiro a novembro de 2024”, diz Galhardo. “Em 2023, o rombo já havia sido parecido, de R$ 256,6 bilhões.”
“Os dados mostram que o relacionamento comercial dos EUA com a China é muito pior do que com outros parceiros importantes, como o Canadá e o México”, acrescenta.
Roberto Dumas, professor de economia chinesa do Insper, lembra que os norte-americanos dependem dos asiáticos, especialmente para importação de itens de tecnologia da informação, semicondutores, aparelhos elétricos e bens manufaturados — que são mais baratos quando produzidos no país.
“Taxar produtos importados pode prejudicar ambas as partes”, diz. “A imposição de tarifas deve elevar a inflação nos EUA. Assim, o banco central americano vai demorar mais para cortar os juros. Isso fortalece o dólar e, consequentemente, deprecia as moedas de países emergentes.”
“Então, é danoso para todo mundo. Além disso, um país vai fazer a réplica [responder com mais tarifas] e outro vai fazer a tréplica. Assim, a inflação fica mais pegajosa no mundo inteiro.”
Para Dumas, o cenário é de cautela mesmo que ocorra um eventual acordo. O especialista lembra que, apesar de os países terem chegado a um acerto durante o primeiro governo de Trump para aliviar a guerra comercial, houve taxação.
Naquela ocasião, os EUA concordaram em reduzir algumas tarifas em troca de um aumento nas compras chinesas de produtos norte-americanos.
“Foi feito um acordo, mas com tarifas retaliatórias. Então, parece que o mercado financeiro está mais otimista do que deveria”, afirma, ao se referir à atual queda do dólar diante da inércia de Trump.
Arma geopolítica
Como mostrou o g1 em dezembro, a “ameaça tarifária” é uma estratégia antiga e conhecida do republicano para tentar vantagens em negociações bilaterais. É uma forma de tentar colocar outros países em desvantagem em uma negociação.
Em 2018, por exemplo, Trump chegou a anunciar a criação de taxas para a importação de aço e alumínio, dois dos produtos que estão no rol de exportações brasileiras para os norte-americanos.
Pouco tempo depois, os países negociaram um esquema de cotas de importação, que permitiam a venda dos produtos com isenção ou redução de tarifa até um determinado limite.
“Trump tem sinalizado que as tarifas serão utilizadas como um instrumento não somente de imposição comercial, mas também de negociação geopolítica”, afirma Lívio Ribeiro, do FGV Ibre.
Um exemplo recente é a ameaça do republicano de taxar produtos da Colômbia. O embate, que gerou uma crise diplomática no último fim de semana, aconteceu depois que o presidente colombiano, Gustavo Petro, proibiu a entrada em seu território de aviões dos EUA com deportados de seu país.
Imediatamente, Trump afirmou que aplicaria tarifas emergenciais de 25% sobre todos os produtos importados da Colômbia, aumentando essa taxa para 50% em uma semana. As ameaças comerciais deram certo: na manhã seguinte, Gustavo Petro voltou atrás.
Donald Trump, presidente dos EUA, e Gustavo Petro, presidente da Colômbia
Jim Watson, Yuri Cortez / AFP
Enquanto a Colômbia não figura nem entre os 10 principais parceiros comerciais dos EUA, a China é um mercado bastante importante para o país. Esse fato pode ajudar a explicar a postura “menos prática” de Trump contra os asiáticos neste início de governo, diz Lívio Ribeiro.
Segundo o especialista, a preocupação de Trump com a inflação norte-americana é um fator que também pode estar pesando para essa postura menos agressiva em relação às tarifas. Como já dito aqui, a taxação tende a elevar preços internos — algo que o republicano não quer.
“No curto prazo, e possivelmente a médio prazo, você não consegue compensar esse aumento do preço do produto importado com uma maximização da produção nacional”, diz.
Portanto, acrescenta Ribeiro, o país terá ou a mesma quantidade de produtos a valores maiores, ou menos produtos entrando. “Ou seja, preços mais elevados.”
“Esse debate possivelmente ganhou mais atenção e, talvez, esteja na raiz de não termos tido, oficialmente, nenhum tipo de medida formalizada por Trump. Mesmo o anúncio previsto para este sábado ainda está sub judice [em análise]”, conclui.
Até o momento, os chineses têm se mostrado dispostos a evitar uma nova guerra comercial. Na última sexta-feira (24), a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Mao Ning, disse que os dois países podem resolver suas diferenças por meio do “diálogo”.
“A cooperação econômica e comercial entre a China e os EUA é benéfica para ambos os lados”, disse, ao declarar que seu país “nunca” busca deliberadamente ter um superávit comercial.
“Guerras comerciais e tarifárias não têm vencedores e não servem aos interesses de ninguém”, completou.
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Quais são os impactos para o Brasil?
Medidas como o aumento de tarifas de importação e a política anti-imigração de Trump podem gerar mais inflação nos EUA. Além disso, a renúncia de impostos para favorecer as empresas norte-americanas é vista como um risco para as contas públicas do país.
Esses são apenas dois motivos que indicam que o Federal Reserve (Fed), o banco central dos EUA, terá mais dificuldade de controlar os preços, mantendo os juros elevados no país.
Na decisão da última quarta-feira (29), a primeira com Trump de volta à Casa Branca, o Fed ignorou a pressão do republicano por cortes e manteve os juros inalterados, na faixa de 4,25% a 4,50% ao ano.
O cenário afeta o Brasil porque juros mais altos por lá fazem os títulos públicos norte-americanos renderem mais. Investidores se animam, levam recursos para os EUA e o dólar se valoriza frente a outras moedas. Esse conjunto de eventos altera o fluxo de investimentos no mundo todo.
A fuga de capital, portanto, é um fator que pode colaborar para que o Banco Central (BC) eleve a taxa Selic por aqui, gerando impacto negativo na atividade econômica brasileira. Por isso, a inflação norte-americana é tão importante — e monitorada de perto pelos agentes econômicos.
Ao considerar o cenário externo e fatores como o quadro fiscal brasileiro, o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC confirmou, na quarta-feira, a elevação da taxa básica de juros brasileira em 1 ponto percentual (p.p.), para 13,25% ao ano.
Além dos reflexos cuja origem direta está nos EUA, o Brasil pode ser atingido por uma eventual desaceleração da economia chinesa caso Trump confirme uma taxação elevada contra os asiáticos.
“A China é o nosso principal parceiro comercial. Pelo que vimos no primeiro mandato de Trump, as tarifas podem implicar em um crescimento menor dos chineses. E uma China crescendo menos demanda menos commodities do Brasil”, explica Galhardo, da Análise Econômica.
Isso pode gerar um impacto negativo na balança comercial brasileira, acrescenta. “Ou seja, são menos dólares entrando, e talvez um aumento do déficit das transações correntes. São potenciais impactos.”
Outro reflexo para o Brasil caso Trump tarife mais a China é a sobreoferta de produtos chineses. Com os EUA importando menos do país, itens manufaturados asiáticos (e com preços muito mais baixo) tendem a buscar outros mercados.
“A China pode encontrar no Brasil uma possibilidade de substituir os EUA como ‘terceiros mercados’. E nós podemos ser invadidos, mais ainda, de carros elétricos e aço chinês”, diz Roberto Dumas, do Insper.
O professor explica que esse movimento traz ganhadores e perdedores. De um lado, é prejudicial para a indústria nacional, que passa a competir com produtos potencialmente mais baratos. Do outro, podem ganhar os consumidores, com a oferta de itens a custos menores.
Enquanto isso, novas tarifas dos EUA contra a China também podem favorecer o agronegócio brasileiro, destaca Lívio Ribeiro, do FGV Ibre.
“O agro brasileiro acabou sendo beneficiado na primeira rodada da guerra comercial porque uma das retaliações que a China pode fazer é deixar de comprar produtos americanos”, diz.
“Esse tipo de desvio de comércio pode aparecer. Então, em princípio, o agro, individualmente, pode se beneficiar. O problema é que [com tarifas] toda a estrutura de custos muda para pior.”
Apesar da eventual janela de oportunidades, o Brasil ainda carece de uma política brasileira de exportação mais afiada, pondera Rodrigo Zeidan, da New York University Shanghai e da Fundação Dom Cabral.
“A eventual taxação da China pelos EUA seria uma oportunidade se o Brasil tivesse uma política comercial decente. Mas não temos nada”, avalia.
“No final das contas, todos os países do mundo podem tentar se beneficiar desse movimento de fragmentação das cadeias de suprimento globais. Mas o Brasil vai continuar do lado de fora, só olhando, porque ainda temos uma estratégia de exportação da década de 1960”, finaliza.